“Filhas da Violência” é o título da nova obra literária da socióloga Miriam Medina, que desde 2017 tem se dedicado a escrever sobre a violência seja ela psicológica, física e/ou sexual. A socióloga é autora de “Se causa dor não é amor”, que relata na primeira pessoa histórias de violência no namoro, e “Uma dor além do parto”, que é uma chamada de atenção para a violência obstétrica em Cabo Verde.
Segundo a socióloga, a obra “Filhas da Violência” retrata a violência intrafamiliar como sendo um fenómeno de alta complexidade e traz relatos com requinte de crueldade, que meninas e adolescentes sofreram por parte dos familiares dentro da residência.
“A título de exemplo, uma menina teve a mão queimada pela própria mãe por ter pego 10 escudos às escondidas para comprar ‘fresquinha’. A mãe justificou tal ato, como ter que educar a filha para que nunca mais ela venha a roubar”, revela.
Outro fator que deixou a socióloga “bastante impactada” é o abuso sexual entre irmãos. “O livro traz plasmado o relato de uma menina que foi abusada sexualmente pelo irmão, que dormia na mesma cama e no mesmo quarto que os pais, separados apenas por uma cortina. A menina justificou este ato, pelo fato dela e o irmão escutarem os pais a terem relações sexuais, o que acabou por estimular o irmão a abusar dela”, revela e acrescenta que há também relatos de uma menina que foi abusada sexualmente pelo padrasto, e quando a mãe descobriu, acusou a filha de seduzir o seu companheiro e a expulsou de casa. “São relatos que nos remetem a um filme de terror da vida real”.
A autora confessa que escrever sobre o tema Violência Intrafamiliar “é com certeza o trabalho mais penoso e desgastante” que já realizou. “Mexeu com a minha estrutura psicológica de tal forma que comecei a ter pesadelos e precisei fazer terapia para dar continuidade a uma luta da qual fiz o meu propósito de vida”, diz e revela que escreveu a obra apenas com a mão direita, uma vez que, está com a mão esquerda paralisada por causa de problemas de saúde.
Miriam Medina revela que já chegou a ser questionada pela filha sobre o motivo de escrever sobre a violência se poderia optar por falar sobre o amor. “Foi então que lhe expliquei que falar sobre a violência é também falar sobre o amor. Porque se cada pessoa escolher ser ‘AMOR’, não precisaremos falar sobre a violência”, diz e acrescenta que escrever sobre qualquer tipo de violência a faz repensar o seu papel enquanto mãe.
Apesar de ser doloroso escrever sobre a violência, a socióloga diz que há necessidade dessas pesquisas e da sua escrita. “A relevância desses estudos para a literatura é fundamental para o questionamento da opressão e das diferentes formas de violência que as meninas e as mulheres ainda sofrem nos dias de hoje.”
Miriam Medina diz que os relatos por si só “são bastante impactantes” e acredita que ninguém irá ficar indiferente face a tanta violência gratuita. “Dos leitores espero que tomem consciência desta problemática, não só para as famílias, mas para a sociedade como um todo. Que não deem por cabal a não denúncia alegando a ´vergonha familiar’, assim como aconteceu como os relatos no livro, que acabaram por não serem denunciados”, salienta e incentiva a denúncia para que meninas e adolescentes não venham a passar por essas situações. “Faço votos que todas as Instituições que trabalham na proteção das crianças e adolescentes, façam jus ao lema Crianças Prioridade absoluta”.
O livro “Filhas da Violência” está previsto ser apresentado no dia 16 de novembro na ilha de São Vicente, a convite do Observatório da Cidadania, no dia 21 em Ribeira Grande de Santo Antão, a convite da Fundação DEAL, e 22 no Porto Novo, a convite da Associação Literária de Santo Antão.
Depois será a vez da cidade da Praia acolher o lançamento no dia 25 de novembro, que é o Dia Internacional para a Eliminação da violência contra as Mulheres, e também o dia em que começam os 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as meninas e mulheres. “E por ser um tema transversal, já tenho convites para fazer a apresentação em alguns países da Europa.”
“Entretanto, estou a fazer a pré-venda, uma vez que, até agora tenho apenas a possibilidade de parceria com a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania, CNDHC, e com a Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Género, ACLCVBG, que demonstraram interesse pela pertinência do tema.”
Mais de 100 denúncias de maus-tratos físicos e psicológicos no primeiro semestre de 2024
É de realçar que Cabo Verde é um dos estados membros que vai participar na primeira Conferência Global Ministerial sobre o fim da violência contra a criança, que acontece em novembro em Bogotá, na Colômbia.
Durante uma sessão preparatória nacional realizada em finais de setembro deste ano, na cidade da Praia, o ministro da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social, Fernando Elísio Freire, disse que Cabo Verde já adotou uma série de instrumentos legais e normativos internacionais que visam a eliminação de todas as formas de violência contra as crianças e adolescentes. “ (…) não podemos permitir que o futuro das nossas crianças seja comprometido pela violência”, disse o ministro.
Durante o evento, a presidente do Instituto Nacional Cabo-verdiano para a Criança e Adolescente (ICCA), Zaida Freitas, disse que no primeiro semestre deste ano (2024) foram registradas 133 denúncias de maus-tratos físicos e psicológicos, 144 denúncias de violência sexual e 253 de negligências.
Em 2023, de acordo com um artigo publicado em maio deste ano no jornal Expresso das Ilhas, o ICCA recebeu 211 denúncias de violência contra crianças, número inferior ao ano de 2022 quando foram assinalados 218 casos.